20040517

Insanity Seeker

II



"Ainda Capaz?", disseram os dois entreolhando-se e dando um sorriso escarninho a
Domingues.
"Capaz de quê?", indagou Maciel.
"Capaz de fazer aquilo que sei fazer", respondeu Domingues.
"De encher a cara?" riram os outros na mesa, inclusive as garotas que até então não
estavam prestando atenção da conversa.
"Não, de pensar, algo que vocês, mesmo sóbrios, ainda tem dificuldade", respondeu
Domingues, com um sorriso irônico em resposta ao escárnio prévio, "Vocês podem me
passar quaisquer problemas dentro de minha área de atuação que ainda sou capaz de
resolvê-lo, ainda consigo discutir o pouco que sei de filosofia e os rumos da área,
e consigo conversar, o que é uma das duas coisas que ainda os mantêm nessa mesa, a
outra, sei bem o que é, assim como vocês, mas não me arrisco a falar." E virou outro
copo.
Percebendo o rumo da conversa os outros voltaram ao assunto antigo.
"Mas então, você não acha que devia fazer como nós? Se firmar em um local, com um
bom emprego, pois sabemos que você pode conseguir, arrumar uma pessoa fixa com quem
você pode contar. Olhe para nós, estamos com a vida feita!!", disse Maciel.
"Me firmar em um local é possível, apenas basta querer isso. Um bom emprego, claro
adoraria poder dar aulas em uma Universidade Pública de forma que eu possa realizar
pesquisas, continuar aprendendo sem me firmar em uma única área que geralmente me
entedia. Não tenho uma pessoa fixa com quem posso contar, na verdade tenho várias, as
quais chamo de amigos, coisa que não sei se posso dizer sobre vocês." Claro que ele
sabia, assim como os outros, que ele não poderia chamá-los de amigos, afinal eles não
tinham ganho a confiança e respeito de Domingues.
"Quanto a estar com a vida feita, tenho outra definição para esse termo. Vejam vocês,
nessa cidade, onde nada acontece, pelo menos nada de importante, casados ou quase, com
um emprego que será repetitivo para o resto de suas vidas, o que não exige nenhum
esforço por parte da mente, colocando-os em uma situação de estagnação, seus objetivos
se foram... e agora? Cuidar dos filhos? Fazê-los crescer e levar adiante o nome da
família?"
"Claro." Respondeu Maciel, "Você não gostaria de levar adiante o nome da sua família?
Esse é meu objetivo".
"Pretendo preservar o nome da minha família", respondeu Domingues, "mas a prole será
o último meio pelo qual procurarei fazer isso. Eu, como ser humano, ou melhor, como
Homo Sapiens, já que estão chamando qualquer 'vegetal' de 'Ser Humano' hoje em dia,
pretendo preservar o nome de minha família através da geração de conhecimento."
"Olhem para vocês, seus objetivos agora são para com terceiros, pelo menos os mais
importantes. Seus objetivos são para não estressarem um relacionamento e para definirem
os objetivos de seus filhos que, na maior parte das vezes, são conflitantes com os
objetivos dos mesmos quando eles resolvem adquirir 'consciência própria da existência'.
Me pergunto, e depois? Cuidar dos netos? Ficar regando plantinhas no jardim?" E virou
mais um copo.
"Aproveitar a vida", respondeu Rodrigo
"Me pergunto que vida é essa, sem objetivos, sem um rumo... a vida não foi feita para
ser aproveitada, mas sim para ser aprimorada, melhorada. Um objetivo concluído que não
gera outro tão interessante quanto é uma função decrescente... vai até atingir o zero e
se nada aparecer nesse meio tempo a vida perde a graça. Vejam os suicidas, em sua grande
maioria são pessoas que estavam com a 'vida feita'. Se isso é ter a vida feita prefiro
que a minha seja incompleta, assim sempre terei pelo que viver e quanto menos envolver
os outros na minha vida, mas envolvê-los mais no meu modo de vida, melhor." Virou mais
um copo, quase caindo da cadeira.
"Veja bem, tome meu exemplo" disse Domingues, já com alguma dificuldade de pronúncia,
"ou melhor, analisemos meu exemplo numa visão Freudiana (apesar que eu não gosto muito
de Freud, mas tenho que respeitá-lo), de acordo com ele o ser humano é formado por duas
'entidades', o 'ID', representando o lado animal, selvagem de nós mesmos e o 'Super Ego',
representando o lado intelectual. Ambos estão sempre em conflito e produzem o meio termo,
o 'Ego', que é aquilo que você mostra para o mundo. Quando o 'Super Ego' deixa de agir
o 'ID' acaba tomando conta, mas muitas vezes não pode atuar devido às regras sociais,
então o ser entra em conflito consigo mesmo, com o próprio ego, que na verdade é agora
responsabilidade do 'ID'. O 'ID', ao contrário do 'Super Ego' não diminui, tampouco
aumenta espontâneamente, apenas se você quiser, por isso, ao aumentar o 'Super Ego'
através da constante busca de conhecimento e inteligência, você acaba aumentando teu
ego e se tornando uma pessoa prepotente, soberba... acho que vocês sabem o que é isso...
eu mantenho uma crescente vontade de aprendizado e, para não ficar SUX, tenho que contra-
balancear isso, por isso minha aparência, por isso continuo gostando de Rock e Heavy Metal,
pois por eles posso estravasar meu lado animalesco sem ferir a sociedade e assim eu
mantenho meu 'Ego' em um nível quase (hic) constante."
"Interessante", respondeu Rodrigo, terminando seu copo ao mesmo tempo em que utiliza as
garotas para inventar uma desculpa para irem embora por estarem sem argumentos para conti-
nuarem a conversa.
"Bem Domingues, até mais. A gente conversa mais outro dia", disse Maciel um tanto quanto
desconcertado.
"Até", disse domingues, já pedindo outra cerveja, pois as quatro garrafas da mesa já
estavam vazias.
Ao saírem da mesa Domingues pensava consigo mesmo como a vida deles era entediante, quais
os rumos que o futuro reservaria para eles naquela vida simplória, medíocre... sentia pena
dos dois e pôs-se a pensar o que estava errado no ensino para que as pessoas agissem daquela
forma.
Ao sentarem-se em um outro bar Maciel e Rodrigo comentavam se eram culpados pro Domingues
ter enlouquecido daquela maneira devido à maneira como o trataram quando eram colegas, riram
e esqueceram-se do assunto, voltando a conversar sobre como seria o carro de seus sonhos.